Fernando Pessoa e seus heteronimos

"Quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha." Fernando Pessoa

Fernando Antonio Nogueira Pessoa foi um poeta português nascido em 1888, em Lisboa. Aos cinco anos adoeceu de tuberculose, doença pulmonar que aguça os sentidos (ouvidos de tuberculoso - diz o ditado popular).

Desde os sete anos escrevia poesias; menino solitário, lia muito e criava "amigos imaginários", aos quais chegava a escrever cartas e até mesmo as respostas deles, em estilos diferentes.


Seus mais famosos "duplos" são conhecidos como os heterônimos: Alberto Caeiro da Silva (poeta pagão do campo), Ricardo Reis (culto e helenista) e Álvaro de Campos (o engenheiro revoltado).


Cada um deles tinha biografia, horóscopo, peculiaridades e estilo próprio. Já o autodidata Pessoa era um intelectual eclético, que lia de tudo, escrevia artigos, contos filosóficos, poemas, críticas de arte, ciências e ocultismo.

Trocava cartas com o polêmico mago inglês Aleister Crowley.
Recebeu-o, inclusive, quando esteve de visita a Lisboa, envolvendo-se no misterioso desaparecimento deste na Boca do Inferno, em Cascais.

Pesquisando a história de Portugal, Pessoa escreveu sobre os Templários, a Maçonaria, a filosofia Rosa-Cruz, Cabala, Astrologia e Alquimia. Seu interesse pelo Ocultismo o levou a diversas fontes de pesquisa mística.

Nesta busca, encontrou o conceito de Egrégora , um tipo de entidade coletiva, resultado da somatória das mentes e das vontades de diversos indivíduos, algo como a ânima mundi dos magos medievais ou o Inconsciente Coletivo do psicólogo Carl G. Jung, uma antiga e enorme inteligência racial, memória genética (McConnel).

Ora, a Lusofonia, o conjunto de todas as pessoas que já falaram e que estão hoje falando, pensando e escrevendo no idioma português, compõe uma somatória que é a Egrégora , a mente coletiva, a Alma Portuguesa, o Espírito da Raça ( Volksgeist ). Então, o gênio literário seria o médium , a pessoa que anula seu ego, sua mente individual e entrega-se a este turbilhão, a esta vontade maior; torna-se a "antena da raça", que serve de veículo para a expressão desta alma racial, deste complexo cultural de crenças e valores, folclore.

O gênio inspirado respira esta atmosfera-espírito-alma em cada suspiro e encarna o coletivo, avatar voluntário possuído por esta força da qual faz parte.

O poeta não fala por si, ele é a voz das vozes, e por isto outras pessoas gostam, identificam-se, são tocadas por suas palavras.


O poeta é o eco de um trovão, que ressoa dentro de cada um dos leitores. Nele se realiza o drama cósmico, por meio dele grita uma raça. Por isto a verdadeira poesia sobrevive ao tempo, ela é eterna enquanto existir a Egrégora , o agregado, Eclesia (Igreja = Assembléia) que se manifesta no poema, através da Lusofonia.

Esta arte, livre do tempo, é o Presente Permanente dos alquimistas, a eterna juventude do elixir da longa vida, a saúde e felicidade da Panacéia Universal.

Pessoa, tal qual outro poeta, o jovem francês Artur Rimbaud, chegou misticamente a uma Alquimia do Verbo : quando um homem de letras emprega como matéria-prima a mais evidente e desprezada das matérias, o idioma , as palavras que todos usam no dia-a-dia, sem se aperceberem de seu poder latente, a Cabala dos sons e das letras.

O poeta faz das palavras o veículo de sua transformação interior, sua entrega e comunhão; mistura-se à Egrégora Lusofônica e deixa que esta flua através dele, fale por ele, como um médium em uma sessão espírita.

Este processo alquímico começa pelo nigredo (a "grande noite escura da alma" - depressão), que Pessoa descreveu como uma disciplina de "sentir tudo de todas as maneiras", que faz lembrar Rimbaud, com seu metódico "desregramento dos sentidos", e William Blake, com seu "os caminhos dos excessos levam à sabedoria".

Ou seja, a hiperestesia, sensibilidade exagerada como descreve Poe na Queda da Casa de Usher , hipersensibilidade que faz sofrer e leva ao isolamento e solidão, à meditação profunda. Segue-se daí o putrefatio , a dissolução, o solvente universal que divide e multiplica as percepções, o deus Osíris esquartejado, Tiamate, Ymir, o Templo de Salomão desmanchado e outros tantos mitos que, em nossa era, encarnam-se no monstro de Frankenstein, feito de partes de diversas pessoas e animais costurados.

É também representado pela Geometria Fractal com sua auto-similaridade, em que cada parte do holograma reproduz o todo; é "o que está em cima é como o que está embaixo", da Tábua Esmeralda, e "meu nome é legião", do demônio bíblico.

Por fim, o arco-íris multicor da cauda do Pavão reforça esta sensação de divisão, multiplicação, que vem antes do albredo (= branco; prata), somatória das cores, e do rubredo, vermelho emocional da Pedra Filosofal que trasforma tudo ao seu redor em ouro puro. Tal trajetória literária de Pessoa está registrada passo a passo em sua obra, cujo enorme conjunto de artigos, contos, poesias e cartas é um diário místico, um livro de receitas, um Grimório desta Alquimia do Verbo.

O caminho individual desta transformação, evolução mística é de responsabilidade de cada um de nós, pelo uso do livre-arbítrio, como explica didaticamente Pessoa no conto filosófico O Banqueiro Anarquista . A liberdade, como meta pessoana, é a liberdade para ser feliz. Pessoa escreveu a receita- Grimório do seu "modelar a alma pelas palavras", e ao estudar a Lusofonia, a Egrégora , a alma racial portuguesa, concluiu que Portugal também é um deus partido, esquartejado como Osíris, uma alma despedaçada que "cresceu e multiplicou-se", dividindo-se em países tão diversos como o Brasil (de um Tiradentes esquartejado), Macao (colônia portuguesa na China), várias colônias africanas, etc. É desta divisão, multiplicidade cultural, tolerância para com outras culturas, que nascerá o Quinto Império , o desabrochar da Egrégora Lusofônica, de que Camões e Pe. Vieira foram os profetas primeiros e de cujo processo talvez Pessoa tenha sido de todos o mais consciente. Então, como membro e parte da Lusofonia, da grande mente que pensa e sente o mundo em português, para realizar a Alquimia do Verbo é preciso repetir para si, vivenciar a história ibérica, ou melhor, ser "múltiplo em um" ou "várias vozes em uma só voz" - explica Pessoa.


Pessoa propõe um processo com três fases, que lembram os três graus da Maçonaria antiga (graus de aprendiz, companheiro e mestre ): 1) Neófito - uma etapa de estudo devorador, quando se lê de tudo, construindo-se uma base de cultura geral bastante eclética, conhecendo a História, as artes, ciências, misticismo, etc. É o solve da Alquimia: indivíduo dividido, sem escolhas, sem ter preferências, múltiplo em um (Omnia in Unum, En Tô Pan). 2) Adepto - o unificador, que ama por igual todas as áreas do conhecimento, que se identifica com todos os sentimentos.


É o coagula alquímico, que une tudo, aplicando os saberes acumulados à vida prática, que escreve este amor na forma de poesia lírica. 3) Mestre - destrói a unidade anterior em prol de outro nível mais elevado (Torá de Atzilut), escreve poesia épica e dramática, até alcançar formas além dos gêneros literários previstos, além das classificações, algo totalmente livre, pessoal, inovador.


O Mestre produz uma literatura com poder, é a pedra filosofal das letras, que desperta quem toca, quem as lê; é a Lusofonia, a alma racial portuguesa, manifestando-se com toda sua magnitude. Grande demais para caber nos estreitos limites dos gêneros literários, e volumosa demais para caber em uma pessoa só - suas diversas facetas exigem as diversas faces dos heterônimos pessoanos.



Desta forma, ao seguir as receitas do diário- grimório de Pessoa, cada poeta pode livrar-se do pesado chumbo da insensibilidade e brilhar como o ouro filosofal da Arte . Neste estágio de ouro, que os árabes chamaram Kimyâ es-saâdah (a Alquimia da Felicidade) , ser feliz é estar livre do tempo, viver o presente sem remorsos do passado ou sofrimentos antecipados por planos de futuros prováveis, do que já foi ou do que será.


Este é o Carpe Diem romano, o Nirvana budista, o Zen japonês, o Tao chinês, o Presente Permanente dos alquimistas medievais, é a concentração na respiração do Yogue, o viver plenamente a cada instante, seguir a intuição, a espontaneidade, o instinto.


Para Pessoa, a Pedra dos Filósofos, a Pedra Bruta a lapidar, a matéria-prima do forno-Atanor emocional são as palavras da língua natal, que ele visitou até como tradutor do inglês e francês.
Este é o sentido oculto do trabalho literário. Assim se forjam os grandes gênios da literatura.

E você, satisfaz-se sendo somente leitor?

Ou vai escrever algo de seu hoje, abrindo-se para a Lusofonia? "Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje".

Comentários

  1. Quanto a mim, faço AGORINHA mesmo meu elogio ao seu texto. Maravilhosa análise! VOCÊ é um grande Mestre.
    Beijos

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  2. Sobre o gibi FROM HELL de Allan Moore, posso modestamente trazer a contribuição de que este médico maçon descrito por Moore - cujo passeio por Londres, explicando sobre toda a magia telúrica e geomântica envolvida na arquitetura da cidade e suas igrejas alinhadas com constelações (abóboda celeste e terra- Quod superius quod inferius na Tábua esmeralda) , é um dos melhores trechos da série para quem conheçe Londinium após Bouddica– este senão é o gesto oculto que realiza cerimonial da mão esquerda no rito antigo e aceito dos filhos de árias (anterior aos Jainas), interdito e vetado que Crowley trouxe à baila após sua visita a Fernando Pessoa (poeta português Templário e Homem de Desejo Martinista) cujas práticas são de outra margem, não ganges como o rito citado acima mas do NILO , os mistérios de Osiris Equartejado ou O DEUS PARTIDO - "Quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha." Fernando Pessoa

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  3. FERNANDO PESSOA:
    O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema — o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.

    O comunismo não é uma doutrina porque é uma antidoutrina, ou uma contradoutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental — isto é de civilização e de cultura —, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem.

    s.d.
    Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993). - 141

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