Entrevista a Calazans sobre HQ na Escola ed Paulus

Gibis em sala de aula? Por que não?


O autor de História em Quadrinhos na Escola mostra como os quadrinhos podem ser um interessante recurso pedagógico em sala de aula.
Por Luiza Oliva


Nos Estados Unidos elas são conhecidas como comics, na França e na Bélgica, bande dessinée, em Portugal, banda desenhada ou história aos quadradinhos, na Espanha é TBO, na América espanhola historieta ou comics, na Itália fumetti, no Japão mangá e no Brasil simplesmente gibi. Crianças – e adultos – de todos os países, em todas as línguas, divertem-se e encantam-se com as aventuras publicadas nas histórias em quadrinhos. No Brasil, as histórias em quadrinhos dirigidas para o público infantil acabam de completar 100 anos: o Tico-Tico foi a primeira revista brasileira voltada para as crianças e as histórias em quadrinhos, lançada em 11 de outubro de 1905.


Hoje, crianças e adolescentes têm acesso a uma infinidade de gibis, dos sucessos ilustrados pelos personagens de Maurício de Souza e da Disney aos inspirados em desenhos animados (como Pókemon, Cavaleiros do Zodíaco, etc.) ou do cinema (Star Wars, Dinossauros, entre outros), passando pelos clássicos, como Batman, Super-Homem, Homem-Aranha e toda a turma de super-heróis.


Além de diversão e entretenimento, as histórias em quadrinhos podem ser utilizadas pedagogicamente em sala de aula. A proposta de Flávio Calazans, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, livre docente em Artes Visuais pela UNESP e professor orientador no mestrado em Comunicação e Mercado da Faculdade Casper Líbero, é que o professor recolha material de quadrinhos dos próprios alunos e, a partir da coleta, os alunos façam suas próprias criações. “É possível desenvolver o senso crítico das crianças a partir dos quadrinhos”, afirma.


Em palestras pelo Brasil, Calazans, que é autor de História em Quadrinhos na Escola (Editora Paulus), percebe que muitos professores já utilizam os quadrinhos em aula mas têm receio de que a iniciativa não agrade a direção da escola. De qualquer maneira, o Brasil está ainda muito distante da realidade de outros países. Calazans comenta que no Japão, todo mangá traz na borda da revista a série do ciclo escolar que está relacionada com o conteúdo daquela edição. Na França, a série de livros em quadrinhos Passageiros do Vento, de François Bourgeon, ganhou prêmio da Academia de Letras Francesa por pesquisa iconográfica. “O europeu tem o costume de realizar um trabalho de pesquisa minucioso e detelhado num livro didático em quadrinhos. Um livro desse tipo precisa de um escritor especializado na linguagem de quadrinhos, que tenha uma narrativa agradável, além de um desenhista com bom traço e que faça pesquisa. Um bandeirante, por exemplo, não pode ser desenhado com uma metralhadora mas com um bacamarte da época. Ele vai ter que pesquisar para ser fiel à imagem da época”, comenta.


Mas o projeto de Calazans para sala de aula está longe de propor que as crianças desenhem seus quadrinhos. Segundo o professor, com tesoura, cola e alguns gibis está pronto o cenário para que os alunos criem suas produções, a um custo muito baixo. Leia, a seguir, a entrevista que Flávio Calazans concedeu a Direcional Escolas.


Qual a sua proposta para o uso da história em quadrinhos em sala de aula?


A idéia é que nem o professor nem o aluno desenhem. Numa primeira fase, o professor deve identificar o que os alunos lêem e pedir que eles tragam material. Iniciei esse projeto com cursos para professores da rede estadual de ensino de São Paulo. Em São Vicente, capacitei para o uso de HQ em sala de aula professores de escolas da favela México 70, que é a segunda maior favela do mundo, só perde para a da Rocinha. Na primeira vez, fui com a idéia de impor o que eu achava que deveria ser lido – Asterix para o ensino de História, Tin-tin para Geografia, super-heróis para Ciências. Tentamos levar isso para sala de aula e a reação foi terrível, porque os alunos não conheciam autores europeus. No meio do curso eu inverti a situação. A proposta, então, foi a de utilizar o material que o aluno trazia. Em primeiro lugar vinha Maurício de Souza, em segundo lugar Disney e em terceiro super-heróis. Mas, chegavam também gibis de treinamento de fábrica e até pornô. O professor fazia a triagem e reaplicava o próprio material. Repetimos esse curso mais duas vezes e tivemos 100% de aceitação. Eles recortavam os personagens e aplicavam no flanelógrafo. Em um pedaço de madeira ou cartolina é grampeada a flanela em cima, ou ainda pode ser usada a própria flanela solta. Depois eles escrevem e colam os balões, enfim, criam sua própria história. Depois, o material pode ser xerocado, se houver verba para xérox. A idéia é trabalhar com o mínimo de verba.


Em relação ao conteúdo, o que pode ser desenvolvido?


Se for uma turma de alfabetização, a HQ pode ajudar a criar narrativas. As crianças contam histórias da própria rotina deles, num primeiro momento, obedecendo as características do personagem. Se a Monica bate nos meninos, eles também vão bater na história. Num segundo momento, o professor pode estimulá-los a inverter a posição, a subverter: a Monica não está batendo, mas levando. O que o aluno acha disso? O aluno começa a ver a questão da violência, a reconstruir a narrativa. A coisa é maior do que parece, é um projeto pedagógico mesmo. Você se apropria dos significados, mistura tudo. É picotar e brincar com as imagens. Nada impede que se misture Monica, Homem-Aranha, Batman, Capitão América, Tio Patinhas numa única cena e ainda incluir caricaturas de políticos. Se apropriando desse material, o aluno irá ressignificar, criar novos significados de acordo com a sua realidade e desenvolver o senso crítico. Basta o professor ‘dar corda’ e conduzir a aula com muito tato. Acontece uma inversão da posição do professor. Ele não vai impor um conteúdo ou uma técnica. Ele vai receber do aluno e trabalhar com o que ele recebe.


E por que você não recomenda que os alunos desenhem?


Pela minha experiência monitorando professores, percebi que há alunos que têm bloqueio de desenho, ou porque apanham em casa se desenharem, ou porque alguém falou que desenho é feio. Quando você pede para desenhar, há um travamento, uma rejeição. Se você pedir para recortar, essa rejeição é contornada. Além do que, aquele aluno que desenha muito bem pode inibir os outros ou acabar desenhando para a classe inteira.


Dentro da sua proposta, a história em quadrinhos está longe de ser alienante...


Pode ser, depende da mão do professor. O quadrinho é um instrumento, uma mídia, como TV ou DVD. O professor pode matar aula fazendo a criançada assistir desenho animado ou pode trazer para eles um filme da National Geographic. Pode-se fazer mal ou bom uso do mesmo instrumento. O que eu proponho é usar a HQ não de maneira reverencial, temerosa, apenas usando um produto que já foi feito para sala de aula, como um livro didático com quadrinhos. Existem livros didáticos que usam o quadrinho de maneira correta, isto é, com muita ação e pouco diálogo. Não se trata de se apropriar dos quadrinhos, mas de criar um livro todo em quadrinhos, com um roteirista e um desenhista. E o Brasil foi pioneiro nisso no começo dos anos 70, poucos sabem, com uma série de livros de História e Geografia. Uma tira produzida para ser publicada em jornal não tem nenhum compromisso pedagógico, nem objetivos didáticos. Normalmente, elas são usadas apenas para explicar as onomatopéias. Quando o quadrinho é mal usado, o próprio aluno rejeita. Ele sabe que está mal usado. Hoje, na época do mangá, com muito movimento e pouquíssimo texto, o aluno quer essa linguagem. Se o livro didático não estiver nessa linguagem ele não vai aceitar. Mas o livro didático é para quem pode comprar. O custo que proponho é quase zero para construir o flanelógrafo. O aluno traz a revista, recorta e brinca de interagir com os personagens. Mistura os personagens entre si, a Monica com o Pato Donald, faz uma grande bagunça disso tudo. E eles começam a se divertir, é lúdico, é prazer. Ninguém nunca foi obrigado a ler quadrinhos. HQ é prazer, lazer, brincadeira. Eles lêem quadrinhos mais do que a gente imagina, muito mais. Há pesquisas que mostram que em uma classe 100% dos alunos conhece a linguagem do quadrinho, já teve uma HQ na mão. E isso acontece em qualquer classe social, não é porque é favela que não circula quadrinho usado. Eles trocam revistas, compram duas pelo preço de uma, o material circula. Não há como não ter acesso.


O trabalho que você propõe ganha vida, fica mais real do que um desenho?


O flanelógrafo é quase como um desenho animado, vira uma coisa interativa, a criança brinca com os personagens. Se a escola tiver condições, pode tirar xerox das páginas que eles montaram e eles mesmos criarem os balões. O trabalho pode ser escaneado, desenhado com photoshop, colorido em corel draw ou projetado num datashow. Mas é possível trabalhar sem nada disso, apenas com o flanelógrafo.


Quais são as dúvidas dos professores em relação ao uso do quadrinho?


A principal é pensar que é preciso desenhar. Eu desmistifico isso. Desenhar, apenas se o aluno quiser. Se o professor fizer questão que ele desenhe, esse processo deve ser gradual. Uma vez que ele começa a brincar com o boneco, ele perde medo e o bloqueio. Trabalho no sentido de mudar a visão do aluno receptor passivo, que só lê, para a posição de criador. Numa primeira fase ele cria a história imitando as características dos personagens, numa segunda fase ele passa a subvertê-las. Isso depende do tato do professor, do ritmo da classe, não existe uma fórmula fechada, como tudo em sala de aula. O professor pode adequar conteúdos para o quadrinho. Em Geografia, a turma da Disney viaja pelo mundo. Numa segunda fase, pode ser questionado o estereótipo do Tio Patinhas capitalista: ele roubou o tesouro, pôs o índio para trabalhar para ele. Está certo? E se você fosse empregado dele? O Tio Patinhas não paga o seu empregado, isso é bom? É preciso mostrar o outro lado: Tio Patinhas é o capitalista selvagem, o Mickey é alcagüete da polícia, Pato Donald é o desempregado crônico, o Pateta é uma espécie de pião do Mickey, sua burrice valoriza a inteligência do Mickey, como a brutalidade do Obelix valoriza a inteligência do Asterix.


Estimular a crítica não vai permitir que aquele personagem deixe de ser um ídolo para a criança?


E por que não? A possibilidade de quebrar o mito não significa que ela vai deixar de ler ou gostar daquele personagem. A criança vai continuar lendo mas será capaz de fazer a crítica.


Qual o ganho gerado pelo uso das HQs em termos de linguagem?


O quadrinho vai concretizar. Se o professor quer uma redação, ele pode pedir que o aluno escreva sobre o que fez na historinha. E a criança vai escrever com o mínimo necessário para uma narração, que é sujeito, predicado e verbo, com ação, conseqüência e conclusão. Não dou uma fórmula pronta, depende do professor até que ponto ele vai trabalhar isso, desde que, é lógico, ele mantenha seu objetivo por aula e por bimestre. Ele deve ter um objetivo a cumprir, senão a aula sai da rédea e vira uma grande brincadeira.


Qual o principal risco do uso das HQs em sala de aula?


O humor, já que o quadrinho é muito lúdico, muito prazeroso. O aluno aprende com prazer. Pela teoria cognitiva, quando você tem prazer, há um derrame do neurotransmissor dopamina. No momento em que o aluno está brincando e aprendendo junto, há esse derrame de dopamina, o que gera a memória de longo prazo. Se ele aprende com medo, estressado, ele produz hidrocortisóide e gera memória de curto prazo. Por que quando decoramos diversos conteúdos para o vestibular no dia seguinte esquecemos tudo? Porque aprendemos com stress. O que se aprendeu com gosto, porque se quis aprender, não se esquece nunca, porque alcança a memória de longo prazo. Ao mesmo tempo em que o quadrinho gera o derrame de dopamina, é prazeroso e lúdico, ele é um problema para o professor porque é humor. E não há nenhuma teoria pedagógica que admita o humor. O humor quebra a estrutura autoritária da sala de aula. Entramos na pedagogia da libertação, de Paulo Freire, e saímos da pedagogia da opressão. Só que podemos sair de uma maneira descontrolada. O grande problema do uso do quadrinho em sala de aula é a questão do humor. Ele tem que ser muito bem dosado para que não vire bagunça. O professor tem que ter muita interação com a classe, muito ‘jogo de cintura’, porque senão não segura mais a classe.


Você já soube de algum caso em que isso ocorreu?


Nunca vi dar errado porque o professor que acompanha a classe conhece o seu universo. O diretor que permite que o seu professor utilize quadrinhos em sala de aula é porque confia nos seus recursos humanos. Com o vídeo acontece o mesmo. Se você não confia no seu professor, não dê vídeo para ele, porque ele vai usar o vídeo para enrolar a classe, ‘matar’ aula. Depende da relação entre o diretor, o orientador ou coordenador pedagógico e o professor. Os professores vêm justamente ouvir as minhas palestras para ter o meu aval. Muitas vezes eles já estão usando quadrinhos em sala, mas sem a direção saber. Sugiro uma exposição do trabalho dos alunos no pátio, com os quadrinhos produzidos em sala de aula, para os pais e as outras classes. Quando o professor descobrir que outros também estão usando a HQ, ele pode criar um núcleo, um grupo de trabalho sobre quadrinhos e desdobrá-lo para games ou cinema, por exemplo. A HQ é uma mídia como as outras, com a diferença que ela é mais barata e mais portátil.


O trabalho com HQ pode servir de estímulo para a leitura e a escrita?


Se há um fôlego inicial para os diálogos dos quadrinhos, que são bem rápidos, dependendo da origem e da história pessoal dos alunos pode-se pegar fôlego para criar um microconto, uma trova, um cordel. Há alunos de descendência nordestina que têm o cordel como parte de sua cultura. Não é difícil partir do quadrinho para o cordel. No cordel os versos são escritos em redondilha maior, assim como na trova. Se o professor soube encadear essas características, ele pode ir do cordel à origem da literatura portuguesa, os trovadores medievais, ou do cordel partir para letras de músicas populares, que os alunos conheçam, mas sempre de maneira crítica. Uma idéia é quadrinizar uma letra de música, fazendo um link com toda a cultura de massa. Ou se o aluno tiver um bonequinho de um personagem, nada impede que o boneco em 3D interaja com a história criada em 2D e que essa relação se transforme numa narrativa.

Entrevista publicada na revista Direcional Escolas - edição 11 - dezembro/2005

Comentários

  1. A entrevista foi em 2005 mas é atual.
    Quanto ao cordel, vale notar que nessas publicações geralmente existem ilustrações.
    No entanto, eu gostaria de ver a união plena entre quadrinhos e cordel em uma hq.
    Seria bem interessante.

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  2. anita o JO DE OLIVEIRA nos anos 70 fez quadrinhos com traço imitando xilogravura de cordel, acho que isto é o que vc procura, saiu pela editora codecri a mesma do jornal pasquim

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