"POR QUE ESCREVO" ensaio de GEORGE ORWELL na Biblioteca Calazans - livros que amei
POR QUE ESCREVO
Uma genial reflexão do autor de "1984" e "ANIMAL FARM" (A Revolução dos Bichos) sobre a melhor arma contra o pessimismo: questionar o que fazemos para acreditarmos no futuro
Ensaio
GEORGE ORWELL
Desde pequeno, com 5 ou 6 anos de idade, eu já sabia que quando crescesse seria escritor. Entre os 17 e os 24 anos de idade tentei abandonar a idéia, mas o fiz com a consciência dee estar violentando minha verdadeira natureza, e de que mais cedo ou mais tarde teria que sentar e escrever livros (...)
Colocando de lado a necessidade de ganhar a vida, acho que existem quatro grandes motivos para uma pessoa escrever.
Essas razões afetam de forma diferente cada escritor, e em cada um deles sua influência pode variar periodicamente, dependendo da atmosfera na qual o escritor vive.
Elas são:
1 – Puro egoísmo. Desejo de parecer mais sabido, de ser falado, de ser lembrado depois da morte, de se vingar dos mais velhos que os esnobaram na infância, etc., etc. É besteira fingir que este não é um motivo, e dos mais fortes. Os escritores compartilham essas características com os cientistas, artistas, políticos, advogados, militares, homens de negócio bem-sucedidos – em suma, com toda a camada superior da humanidade. A grande maioria dos seres humanos não é terrivelmente egoísta. Depois dos 30 anos eles abandonam a ambição individual – em muitos caos, eles perdem completamente a consciência de quase serem indivíduos – e vivem principalmente para os outros, ou então se deixam asfixiar no trabalho estupidificante. Mas existe ainda uma minoria de pessoas dotadas e com vontade, dispostas a viver sua vida até o fim, e os escritores pertencem a essa categoria. Os escritores sérios, acho, são em geral mais presunçosos e voltados para si próprios que os jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2 – Entusiasmo estético. Percepção da beleza no mundo externo, ou nas palavras e na sua colocação correta. Prazer do impacto de um som em outro, na firmeza da boa prosa ou no ritmo de uma boa história. Desejo de compartilhar uma experiência que se julga valiosa e que não deve se perder. O fato estético é fraco em muitos escritores, mas mesmo um panfletista ou um autor de livros escolares tem suas palavras prediletas, que o atraem por razões não utilitárias, ou ele pode ter gosto por tipografia, sabe apreciar o tamanho de margens, etc. Acima do nível de um roteiro de estradas de ferro, nenhum livro é totalmente isento de considerações estéticas.
3 – Impulso histórico. Desejo de ver as coisas como elas são, de descobrir os fatos verdadeiros e acumulá-los para o uso da posteridade.
4 – Propósito político – usando a palavra “político” no sentido mais amplo possível. Desejo de empurrar o mundo numa certa direção, de modificar a visão da sociedade pela qual as pessoas devem lutar. Mais uma vez, nenhum livro é genuinamente isento de considerações políticas. A opinião de que a arte não deve ter nada a ver com a política é, em si, uma atitude política.
Pode-se ver que esses vários impulsos estão em conflito uns com os outros e flutuam de pessoa para pessoa e de época. Por natureza – tomando por “natureza” o estado que se atinge ao se tornar adulto – sou uma pessoa na qual os primeiros três motivos pesariam mais que o último. Numa época de paz eu poderia ter escrito livros ornamentados ou simplesmente descritivos, e teria permanecido totalmente inconsciente das minhas posições políticas. Do jeito que aconteceu, fui obrigado a me tornar uma espécie de panfletista. Primeiro, passei cinco anos numa profissão inadequada (a Polícia Imperial da Índia, em Burma) e depois experimentei a pobreza e a sensação de fracasso. Isso aumentou meu ódio natural à autoridade e me tornou pela primeira vez completamente consciente da existência das classes trabalhadoras, e o trabalho em Burma me proporcionou uma certa compreensão da natureza do imperialismo, mas essas experiências não foram suficientes para me dar uma orientação política acurada. Depois veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola, etc. No final de 1935 eu ainda não tinha chegado a uma decisão firme. Lembro-me de um pequeno poema que escrevi na época, experimentando meu dilema:
Feliz vigário eu poderia ter sido
Duzentos anos atrás
Pregando a danação eterna
E espiando minha nogueira crescer
(...)
Sonhei que morava em casa de mármore
E ao acordar vi que era verdade;
Não nasci para uma época como essa;
Mas, e João? E José? E você?
A guerra na Espanha e os outros acontecimentos de 1936-37 desequilibraram a balança, e então fiquei Sabendo onde eu estava. Cada linha de trabalho sério que fiz desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o entendo. Parece-me tolice, numa época como a nossa, pensar que uma pessoa pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todos escrevem sobre isso, com um ou outro disfarce. É apenas uma questão de que lado a pessoa está e qual o caminho que escolheu seguir. E quanto mais a pessoa tem consciência de suas tendências políticas, maiores chances ela terá de agir politicamente sem sacrificar sua integridade estética e intelectual.
O que mais desejei durante esses últimos dez anos foi fazer do texto político uma obra de arte.
Meu ponto de partida é sempre uma sensação de tomar partido, um senso de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo “vou produzir uma obra de arte”. Eu o escrevo porque existe alguma mentira que eu quero denunciar, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e minha preocupação inicial é conseguir uma audiência. Mas eu não conseguiria realizar o trabalho de escrever um livro, ou mesmo um longo artigo para uma revista, se não se tratasse também de uma experiência estética. Quem se preocupar em examinar minha obra verá que mesmo quando se trata de propaganda aberta ela contém muita coisa que um político tempo-integral consideraria irrelevante. Não sou capaz, nem quero, de abandonar completamente a visão do mundo que adquiri na infância. Enquanto estiver vivo e bem, continuarei a apreciar a importância do estilo, a amar a superfície das coisas, a achar prazer em objetos sólidos e pedaços de informação inúteis. Não adianta querer suprimir esse meu aspecto. A tarefa é conciliar meus gostos e desgostos pessoais com as atividades essencialmente públicas, não-individuais, que o nosso tempo nos impinge a todos.
Não é fácil. Isso coloca problemas de construção e de linguagens, e coloca também de uma nova forma o problema da autenticidade. (...)
Relendo as últimas páginas, verifico que dei a impressão de que minhas razões para escrever são todas ditadas por espírito público. Não quero que essa seja a impressão final. Todos os escritores são presunçosos, egoístas e preguiçosos, e bem no fundo de sua motivação reside um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como uma doença prolongada e dolorosa. Ninguém se disporia a enfrentar tal coisa se não fosse induzido por uma espécie de demônio a que não se pode resistir nem entender. Tudo o que se sabe é que o demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz a criança berrar por atenção. E, no entanto, também é verdade que ninguém escreve nada legível sem uma luta constante para esconder a própria personalidade. Um bom texto é como uma vidraça. Não posso dizer com certeza qual dos meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido.
E olhando para trás para meu trabalho, vejo que, invariavelmente, onde faltou um propósito político é que eu escrevi livros sem vida e me deixei cair na armadilha dos trechos cheios de lantejoulas, frases em significado, adjetivos para decorações e besteiras em geral.
Uma genial reflexão do autor de "1984" e "ANIMAL FARM" (A Revolução dos Bichos) sobre a melhor arma contra o pessimismo: questionar o que fazemos para acreditarmos no futuro
Ensaio
GEORGE ORWELL
Desde pequeno, com 5 ou 6 anos de idade, eu já sabia que quando crescesse seria escritor. Entre os 17 e os 24 anos de idade tentei abandonar a idéia, mas o fiz com a consciência dee estar violentando minha verdadeira natureza, e de que mais cedo ou mais tarde teria que sentar e escrever livros (...)
Colocando de lado a necessidade de ganhar a vida, acho que existem quatro grandes motivos para uma pessoa escrever.
Essas razões afetam de forma diferente cada escritor, e em cada um deles sua influência pode variar periodicamente, dependendo da atmosfera na qual o escritor vive.
Elas são:
1 – Puro egoísmo. Desejo de parecer mais sabido, de ser falado, de ser lembrado depois da morte, de se vingar dos mais velhos que os esnobaram na infância, etc., etc. É besteira fingir que este não é um motivo, e dos mais fortes. Os escritores compartilham essas características com os cientistas, artistas, políticos, advogados, militares, homens de negócio bem-sucedidos – em suma, com toda a camada superior da humanidade. A grande maioria dos seres humanos não é terrivelmente egoísta. Depois dos 30 anos eles abandonam a ambição individual – em muitos caos, eles perdem completamente a consciência de quase serem indivíduos – e vivem principalmente para os outros, ou então se deixam asfixiar no trabalho estupidificante. Mas existe ainda uma minoria de pessoas dotadas e com vontade, dispostas a viver sua vida até o fim, e os escritores pertencem a essa categoria. Os escritores sérios, acho, são em geral mais presunçosos e voltados para si próprios que os jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2 – Entusiasmo estético. Percepção da beleza no mundo externo, ou nas palavras e na sua colocação correta. Prazer do impacto de um som em outro, na firmeza da boa prosa ou no ritmo de uma boa história. Desejo de compartilhar uma experiência que se julga valiosa e que não deve se perder. O fato estético é fraco em muitos escritores, mas mesmo um panfletista ou um autor de livros escolares tem suas palavras prediletas, que o atraem por razões não utilitárias, ou ele pode ter gosto por tipografia, sabe apreciar o tamanho de margens, etc. Acima do nível de um roteiro de estradas de ferro, nenhum livro é totalmente isento de considerações estéticas.
3 – Impulso histórico. Desejo de ver as coisas como elas são, de descobrir os fatos verdadeiros e acumulá-los para o uso da posteridade.
4 – Propósito político – usando a palavra “político” no sentido mais amplo possível. Desejo de empurrar o mundo numa certa direção, de modificar a visão da sociedade pela qual as pessoas devem lutar. Mais uma vez, nenhum livro é genuinamente isento de considerações políticas. A opinião de que a arte não deve ter nada a ver com a política é, em si, uma atitude política.
Pode-se ver que esses vários impulsos estão em conflito uns com os outros e flutuam de pessoa para pessoa e de época. Por natureza – tomando por “natureza” o estado que se atinge ao se tornar adulto – sou uma pessoa na qual os primeiros três motivos pesariam mais que o último. Numa época de paz eu poderia ter escrito livros ornamentados ou simplesmente descritivos, e teria permanecido totalmente inconsciente das minhas posições políticas. Do jeito que aconteceu, fui obrigado a me tornar uma espécie de panfletista. Primeiro, passei cinco anos numa profissão inadequada (a Polícia Imperial da Índia, em Burma) e depois experimentei a pobreza e a sensação de fracasso. Isso aumentou meu ódio natural à autoridade e me tornou pela primeira vez completamente consciente da existência das classes trabalhadoras, e o trabalho em Burma me proporcionou uma certa compreensão da natureza do imperialismo, mas essas experiências não foram suficientes para me dar uma orientação política acurada. Depois veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola, etc. No final de 1935 eu ainda não tinha chegado a uma decisão firme. Lembro-me de um pequeno poema que escrevi na época, experimentando meu dilema:
Feliz vigário eu poderia ter sido
Duzentos anos atrás
Pregando a danação eterna
E espiando minha nogueira crescer
(...)
Sonhei que morava em casa de mármore
E ao acordar vi que era verdade;
Não nasci para uma época como essa;
Mas, e João? E José? E você?
A guerra na Espanha e os outros acontecimentos de 1936-37 desequilibraram a balança, e então fiquei Sabendo onde eu estava. Cada linha de trabalho sério que fiz desde 1936 foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o entendo. Parece-me tolice, numa época como a nossa, pensar que uma pessoa pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todos escrevem sobre isso, com um ou outro disfarce. É apenas uma questão de que lado a pessoa está e qual o caminho que escolheu seguir. E quanto mais a pessoa tem consciência de suas tendências políticas, maiores chances ela terá de agir politicamente sem sacrificar sua integridade estética e intelectual.
O que mais desejei durante esses últimos dez anos foi fazer do texto político uma obra de arte.
Meu ponto de partida é sempre uma sensação de tomar partido, um senso de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo “vou produzir uma obra de arte”. Eu o escrevo porque existe alguma mentira que eu quero denunciar, algum fato para o qual quero chamar a atenção, e minha preocupação inicial é conseguir uma audiência. Mas eu não conseguiria realizar o trabalho de escrever um livro, ou mesmo um longo artigo para uma revista, se não se tratasse também de uma experiência estética. Quem se preocupar em examinar minha obra verá que mesmo quando se trata de propaganda aberta ela contém muita coisa que um político tempo-integral consideraria irrelevante. Não sou capaz, nem quero, de abandonar completamente a visão do mundo que adquiri na infância. Enquanto estiver vivo e bem, continuarei a apreciar a importância do estilo, a amar a superfície das coisas, a achar prazer em objetos sólidos e pedaços de informação inúteis. Não adianta querer suprimir esse meu aspecto. A tarefa é conciliar meus gostos e desgostos pessoais com as atividades essencialmente públicas, não-individuais, que o nosso tempo nos impinge a todos.
Não é fácil. Isso coloca problemas de construção e de linguagens, e coloca também de uma nova forma o problema da autenticidade. (...)
Relendo as últimas páginas, verifico que dei a impressão de que minhas razões para escrever são todas ditadas por espírito público. Não quero que essa seja a impressão final. Todos os escritores são presunçosos, egoístas e preguiçosos, e bem no fundo de sua motivação reside um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como uma doença prolongada e dolorosa. Ninguém se disporia a enfrentar tal coisa se não fosse induzido por uma espécie de demônio a que não se pode resistir nem entender. Tudo o que se sabe é que o demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz a criança berrar por atenção. E, no entanto, também é verdade que ninguém escreve nada legível sem uma luta constante para esconder a própria personalidade. Um bom texto é como uma vidraça. Não posso dizer com certeza qual dos meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido.
E olhando para trás para meu trabalho, vejo que, invariavelmente, onde faltou um propósito político é que eu escrevi livros sem vida e me deixei cair na armadilha dos trechos cheios de lantejoulas, frases em significado, adjetivos para decorações e besteiras em geral.
Como escreveu Blaise Pascal: “Desculpe-me tê-lo cansado com uma carta tão longa, mas não tinha tempo para escrever-lhe uma carta breve” (Já vi no google esta frase atribuida a Padre Vieira e já li o mesmo conceito aplicado como autoria a DESCARTES: “Desculpe a carta longa, escreveria outra, menor, se tivesse tempo”)
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