APAGANDO FLAVIO CALAZANS - "Envultamento :caso Flavio Calazans" por Shirlei Massapust
Em 22/11/2019 meu amigo Flavio Calazans escreveu-me inconsolado pois descobriu que o túmulo de seu avô foi violado e o cadáver vilipendiado. O mármore da lápide foi quebrado. O coveiro alegou faltar um fêmur e o crânio. Embora nada tenha de oficial, uma cuidadora de túmulos informou que no mês anterior quatro jovens bem vestidos estiveram andando pelo cemitério com um papel na mão e sem perguntar nada a ninguém.
Sem esperança de chegar ao(s) violador(es) do túmulo, e temendo prejudicar os funcionários do cemitério, Calazans decidiu não fazer um boletim de ocorrência, sobretudo porque “oficialmente a vibração dos carros na rua brincou a laje e os ossos se desfizeram em pó”.
Me parece deveras inverossímil que um crânio e um fêmur hajam se decomposto antes do restante dos ossos. É mais provável que alguém tenha levado. Muita gente viola túmulos. Estudantes de odontologia utilizam dentes em bom estado de conservação nas disciplinas de endodontia e dentística para fins de treino de restauração e canal. Os dentes são solicitados pelos professores e muitos alunos conseguem por meio de doações ou compram em consultórios, enquanto outros recorrem ao comércio ilegal em cemitérios.
Contudo, estudantes de odontologia não precisam de fêmur nem de crânios. Por outro lado, necrófilos geralmente buscam defuntos frescos, com a carne incorrupta.
Ignoramos a verdade real, os motivos que levam quem quer que seja a furtar restos mortais de pessoas venturosas. O túmulo de F. W. Murnau (1888-1931), no cemitério de Stahnsdorf, também foi violado em julho de 2015. Furtaram o crânio do famoso diretor de Nosferatu (1922) e outros filmes clássicos do expressionismo alemão.
Talvez haja interesse na posse de relíquias.
Outra hipótese plausível que me veio à mente foi a prática do feitiço de envultamento. Enquanto pesquisava sobre arte tumular, Clarival do PradoValladares (1918-1983) descobriu incontáveis vestígios da prática de tal feitiço em cemitérios brasileiros. Ele escreveu o seguinte sobre sua pesquisa de campo:
O achado mais estranho nessas pesquisas ocorreu no velho cemitério, de cripta, no antigo Convento de São Francisco, de Vila Velha de Alagoas, hoje Deodoro. O cemitério em desuso, com entrada de alçapão pela Capela do Sacramento, consta de uma cripta de cerca de 4 X 6 m em correspondência às dimensões da capela, com carneiros construídos nas paredes laterais e lajes de campas. Sua coberta tem a altura máxima de 2,5 m. Fizemos a documentação fotográfica com um refletor que providencialmente nos serviu para o exame detalhado das inumeráveis inscrições de nomes de pessoas e datas recentes, até de 1965, em letras de imprensa e de uma mesma caligrafia, enchendo totalmente o forro abobadal da cripta. De maneira alguma aquelas inscrições, feitas a fumo de velas, contra o reboco, poderiam corresponder aos nomes dos sepultados. Praticamente todas as datas já estavam fora do seu uso, e nem há sinais nem notícias de sepultamento nestes últimos decênios. Encontramos urnas de restos mortais trasladados, violadas, com os ossos, cabelos e fragmentos de vestes, espalhados sobre um batente.
As freiras que dirigem o educandário instalado no antigo convento franciscano de Deodoro nada sabem informar porque é uma ocorrência antes da presença delas. Em nossa interpretação trata-se de prática de feitiçaria, com uma caligrafia idêntica para várias inscrições, cujos nomes não parecem ser de mortos, mas de indiciados do fetichismo. Nada mais podemos indicar sobre esses achados, ignorados pelas pessoas locais, senão a evidência das fotografias.
No velho Cemitério de N. S. do Rosário (1875), das ruínas de Iguaçu Velha, além da prática de macumba em torno do Cruzeiro, que tem ação votiva e de apelo nas viscitudes dos crentes, há os restos de um luxuoso e impotente jazigo de cerca de cinco metros de altura construído em base de alvenaria revestida de laje de mármore, pedestal e nicho em colunatas de mármore. Próximo deste jazigo encontram-se os restos da base de uma capela-jazigo cuja entrada foi fechada por parede de alvenaria e na qual, posteriormente, se fez uma abertura de 40 X 50 cm. Examinando o interior desta capela-jazigo, com o foco de uma lanterna, encontramos uma quantidade espantosa de objetos de uso pessoal (roupas, cartas, retratos, vidros, terços, etc.) e todas as paredes preenchidas com nomes e datas de pessoas riscadas a carvão, grafite, tinta, e também a fumo de vela. Há uma certa semelhança entre esta observação e aquela outra de Deodoro, de Alagoas. Nossa cautela está em diferenciar a prática ingênua da macumba, em termos de ação votiva e de apelo, com esta outra de caráter de feitiçaria demonológica capaz de atingir a criminalidade do vandalismo.[1]
Os ossos da atriz Daniella Peres, assassinada em 28 de dezembro de 1992, foram transferidos pela família para um lugar não revelado, depois que foi constatada a violação do túmulo da atriz, no Cemitério São João Batista, em Botafogo.
De acordo com a novelista Glória Perez, mãe da vítima, o túmulo foi aberto na semana do Natal, e, dentro dele, havia flores do cruzeiro. Ao lado, foram encontrados dois bonecos amarrados e espetados com alfinetes. Na lápide, uma inscrição indicava a data do assassinado. — “Havia um detalhe impressionante, que nos remete à noite do crime: bem junto ao corpo dela, havia ossos de um animal grande serrados. As pontas da sapatilha que enfeita o túmulo também foram cuidadosamente serradas” — contou Glória, revoltada com o vandalismo.[2]
Diante do exposto, podemos retornar ao caso Calazans e questionar: Seria envultamento? Talvez sim, talvez não.
Feitiços de envultamento geralmente envolvem o habito de escrever nomes de desafetos, enterrar objetos pessoais e amostras de DNA. Enfim, costumam deixar vestígios aparentes. E é mais comum levar souvenirs descartados de antigas ossadas exumadas e cremadas (prego de caixão, resto de madeira). Feiticeiros sérios não querem problemas. Melhor evitar os crimes de perturbação de cerimônia funerária, violação de sepulturas, destruição e vilipêndio a cadáver, todos tipificados do artigo 209 ao 212 do Código Penal Brasileiro.
Uma última hipótese para o ocorrido seria vingança ou manifestações de ódio.
Flavio Calazans é um militante anarquista atualmente focado na denúncia contra ideologias de esquerda.
Isso aborreceu ideólogos de esquerda que impediram sua presença num evento de quadrinho em Santos.
E desde então coisas estranhas vem acontecendo.
Calazans passou a receber telefonemas com sons de tiros, gargalhadas, etc.
Alguém – não se sabe quem – arrancou todas as páginas com quadrinhos de Flavio Calazans nas publicações constantes no acervo da Gibiteca da Prefeitura.
Foram danificadas as revistas Aventura e Ficçãonº 19 (editora Abril), todos os exemplares de Porrada,os álbuns Brasília Heavy Metal e Pátria Armada: Visões de Guerra.
Desapareceu toda a coleção com 20 anos da revista BARATA, com exemplares mimeografados desde 1979.
Suponhamos que a(s) mesma(s) pessoa(s) esteja(m) furtado seus quadrinhos no acervo de bibliotecas públicas e ossos de seu avô no cemitério, sobretudo levando o crânio, que é a parte do ser humano simbolicamente ligada à identidade, ao próprio eu.
Em ambos os casos é a memória para a posteridade que resta prejudicada. Estão apagando vestígios da passagem da família Calazans pelo mundo.
Referências:
[1] VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros: Um estudo da arte cemiterial ocorrida no Brasil desde as sepulturas de igrejas e as catacumbas de ordens e confrarias até as necrópoles secularizadas.Vol I. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1972, p 439-1440.
[2] MATHEUS, Letícia. Túmulo de atriz é violado. Em: EXTRA, 2ª edição, 30/12/1999, p 12.
Sem esperança de chegar ao(s) violador(es) do túmulo, e temendo prejudicar os funcionários do cemitério, Calazans decidiu não fazer um boletim de ocorrência, sobretudo porque “oficialmente a vibração dos carros na rua brincou a laje e os ossos se desfizeram em pó”.
Me parece deveras inverossímil que um crânio e um fêmur hajam se decomposto antes do restante dos ossos. É mais provável que alguém tenha levado. Muita gente viola túmulos. Estudantes de odontologia utilizam dentes em bom estado de conservação nas disciplinas de endodontia e dentística para fins de treino de restauração e canal. Os dentes são solicitados pelos professores e muitos alunos conseguem por meio de doações ou compram em consultórios, enquanto outros recorrem ao comércio ilegal em cemitérios.
Contudo, estudantes de odontologia não precisam de fêmur nem de crânios. Por outro lado, necrófilos geralmente buscam defuntos frescos, com a carne incorrupta.
Ignoramos a verdade real, os motivos que levam quem quer que seja a furtar restos mortais de pessoas venturosas. O túmulo de F. W. Murnau (1888-1931), no cemitério de Stahnsdorf, também foi violado em julho de 2015. Furtaram o crânio do famoso diretor de Nosferatu (1922) e outros filmes clássicos do expressionismo alemão.
Talvez haja interesse na posse de relíquias.
Outra hipótese plausível que me veio à mente foi a prática do feitiço de envultamento. Enquanto pesquisava sobre arte tumular, Clarival do PradoValladares (1918-1983) descobriu incontáveis vestígios da prática de tal feitiço em cemitérios brasileiros. Ele escreveu o seguinte sobre sua pesquisa de campo:
O achado mais estranho nessas pesquisas ocorreu no velho cemitério, de cripta, no antigo Convento de São Francisco, de Vila Velha de Alagoas, hoje Deodoro. O cemitério em desuso, com entrada de alçapão pela Capela do Sacramento, consta de uma cripta de cerca de 4 X 6 m em correspondência às dimensões da capela, com carneiros construídos nas paredes laterais e lajes de campas. Sua coberta tem a altura máxima de 2,5 m. Fizemos a documentação fotográfica com um refletor que providencialmente nos serviu para o exame detalhado das inumeráveis inscrições de nomes de pessoas e datas recentes, até de 1965, em letras de imprensa e de uma mesma caligrafia, enchendo totalmente o forro abobadal da cripta. De maneira alguma aquelas inscrições, feitas a fumo de velas, contra o reboco, poderiam corresponder aos nomes dos sepultados. Praticamente todas as datas já estavam fora do seu uso, e nem há sinais nem notícias de sepultamento nestes últimos decênios. Encontramos urnas de restos mortais trasladados, violadas, com os ossos, cabelos e fragmentos de vestes, espalhados sobre um batente.
As freiras que dirigem o educandário instalado no antigo convento franciscano de Deodoro nada sabem informar porque é uma ocorrência antes da presença delas. Em nossa interpretação trata-se de prática de feitiçaria, com uma caligrafia idêntica para várias inscrições, cujos nomes não parecem ser de mortos, mas de indiciados do fetichismo. Nada mais podemos indicar sobre esses achados, ignorados pelas pessoas locais, senão a evidência das fotografias.
No velho Cemitério de N. S. do Rosário (1875), das ruínas de Iguaçu Velha, além da prática de macumba em torno do Cruzeiro, que tem ação votiva e de apelo nas viscitudes dos crentes, há os restos de um luxuoso e impotente jazigo de cerca de cinco metros de altura construído em base de alvenaria revestida de laje de mármore, pedestal e nicho em colunatas de mármore. Próximo deste jazigo encontram-se os restos da base de uma capela-jazigo cuja entrada foi fechada por parede de alvenaria e na qual, posteriormente, se fez uma abertura de 40 X 50 cm. Examinando o interior desta capela-jazigo, com o foco de uma lanterna, encontramos uma quantidade espantosa de objetos de uso pessoal (roupas, cartas, retratos, vidros, terços, etc.) e todas as paredes preenchidas com nomes e datas de pessoas riscadas a carvão, grafite, tinta, e também a fumo de vela. Há uma certa semelhança entre esta observação e aquela outra de Deodoro, de Alagoas. Nossa cautela está em diferenciar a prática ingênua da macumba, em termos de ação votiva e de apelo, com esta outra de caráter de feitiçaria demonológica capaz de atingir a criminalidade do vandalismo.[1]
Os ossos da atriz Daniella Peres, assassinada em 28 de dezembro de 1992, foram transferidos pela família para um lugar não revelado, depois que foi constatada a violação do túmulo da atriz, no Cemitério São João Batista, em Botafogo.
De acordo com a novelista Glória Perez, mãe da vítima, o túmulo foi aberto na semana do Natal, e, dentro dele, havia flores do cruzeiro. Ao lado, foram encontrados dois bonecos amarrados e espetados com alfinetes. Na lápide, uma inscrição indicava a data do assassinado. — “Havia um detalhe impressionante, que nos remete à noite do crime: bem junto ao corpo dela, havia ossos de um animal grande serrados. As pontas da sapatilha que enfeita o túmulo também foram cuidadosamente serradas” — contou Glória, revoltada com o vandalismo.[2]
Diante do exposto, podemos retornar ao caso Calazans e questionar: Seria envultamento? Talvez sim, talvez não.
Feitiços de envultamento geralmente envolvem o habito de escrever nomes de desafetos, enterrar objetos pessoais e amostras de DNA. Enfim, costumam deixar vestígios aparentes. E é mais comum levar souvenirs descartados de antigas ossadas exumadas e cremadas (prego de caixão, resto de madeira). Feiticeiros sérios não querem problemas. Melhor evitar os crimes de perturbação de cerimônia funerária, violação de sepulturas, destruição e vilipêndio a cadáver, todos tipificados do artigo 209 ao 212 do Código Penal Brasileiro.
Uma última hipótese para o ocorrido seria vingança ou manifestações de ódio.
Flavio Calazans é um militante anarquista atualmente focado na denúncia contra ideologias de esquerda.
Isso aborreceu ideólogos de esquerda que impediram sua presença num evento de quadrinho em Santos.
E desde então coisas estranhas vem acontecendo.
Calazans passou a receber telefonemas com sons de tiros, gargalhadas, etc.
Alguém – não se sabe quem – arrancou todas as páginas com quadrinhos de Flavio Calazans nas publicações constantes no acervo da Gibiteca da Prefeitura.
Foram danificadas as revistas Aventura e Ficçãonº 19 (editora Abril), todos os exemplares de Porrada,os álbuns Brasília Heavy Metal e Pátria Armada: Visões de Guerra.
Desapareceu toda a coleção com 20 anos da revista BARATA, com exemplares mimeografados desde 1979.
Suponhamos que a(s) mesma(s) pessoa(s) esteja(m) furtado seus quadrinhos no acervo de bibliotecas públicas e ossos de seu avô no cemitério, sobretudo levando o crânio, que é a parte do ser humano simbolicamente ligada à identidade, ao próprio eu.
Em ambos os casos é a memória para a posteridade que resta prejudicada. Estão apagando vestígios da passagem da família Calazans pelo mundo.
Referências:
[1] VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros: Um estudo da arte cemiterial ocorrida no Brasil desde as sepulturas de igrejas e as catacumbas de ordens e confrarias até as necrópoles secularizadas.Vol I. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1972, p 439-1440.
[2] MATHEUS, Letícia. Túmulo de atriz é violado. Em: EXTRA, 2ª edição, 30/12/1999, p 12.
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